O termo “veado” ou “viado”? Se na grafia já há dúvidas, a origem do termo pejorativo para gays é um enigma. Era! O jornalista e pesquisador Valmir Costa desvendou este mistério e publicou no recém-lançado livro Repórter Eros: a história do jornalismo erótico Brasileiro (Cepe Editora). O escritor diz que as suposições sobre a origem insulto não passavam de especulações. “Algumas, de tão absurdas, foram descartadas, como a ideia de que tinha influência no Bambi da Disney (1942)”. Outra hipótese seria a grafia com “i”, na redução de “desviado” ou de “transviado”. Este último popular a partir dos anos 1950. “Essas explicações não se sustentaram, pois o bloco carnavalesco Caçadores de Veado, fundado em 1922, já usava o termo com conotação homofóbica”, observa.
Outra conjectura era sobre os gays fugindo da polícia, pois “corriam como veados”. Esta versão foi considerada, mas descartada durante a investigação. “A expressão era corriqueira no século 19. Cabia a qualquer um que corresse rápido”. Outra suposição foi a de que o veado se envolve com outro macho e busca fêmeas apenas no cio. “Aí teríamos de buscar uma origem pré-histórica, não acha?”, brinca. Ele também explorou a possível relação com o jogo do bicho, criado em 1892 pelo Barão de Drummond. “Não achei pistas nessa linha investigativa”.
Cigarros Veado — Sobrava a relação com os cigarros da Marca Veado, apontada por alguns historiadores e sociólogos. Especulava-se que a imagem exuberante do veado na embalagem do cigarro refletisse a dos gays afeminados. “Descartei essa versão, mas continuei na pista da marca dos cigarros veado”, conta o autor. Ao encontrar a foto do prédio dos cigarros, com esculturas de cabeças de veado, Costa supôs que gays usassem o local como ponto de encontro, sendo apontados como veados por causa das esculturas. “A suposição não se confirmou. Procurei investigar a origem da fábrica de fumos”.
A Grande Manufatura de Fumos e Cigarros Marca Veado foi fundada em 1873 na Rua Sete de Setembro, no centro do Rio de Janeiro. “Era um pequeno armazém de cigarros manufaturados do português José Francisco Corrêa, de 20 anos. Morador de Niterói, ele chegou ao Brasil aos 10, casou-se aos 29 e teve duas filhas”, informa. Sobre a fábrica de cigarros, Costa afirma que o nome veado era apropriado, pois possuía uma associação os homens, seus principais consumidores. “Vangloriavam-se pelo abate do bicho. Por ser veloz e saltitante, quem conseguisse abatê-lo, era bom de mira, de destreza. Era varonil. Suas cabeças galhudas, empalhadas nas paredes como troféus, eram a simbologia dessa macheza”, explica.
Para cornos — Porém, nem tudo eram flores na imagem do veado relacionada à masculinidade. Durante a pesquisa, o escritor descobriu que “veado” era termo ofensivo para homens constantemente traídos. “Se era um simples corno, os chifres do touro bastavam. Se muito traídos, só as galhadas do veado serviam”, esclarece. A descoberta se deve ao jornal moralista Corsário, fundado em 1880 por Apulcho de Castro, um negro livre que criticava a corrupção, a conivência policial com a prostituição e a política do imperador Pedro II. Por conta do novo estilo, o Corsário foi rotulado de “imprensa pornográfica” pela imprensa “dita séria”. Em suas denúncias, Apulcho xingava homens, supostamente honrados, de “veados”. “Foi uma grande surpresa. Achei engraçado. Veado é algo que assombra o machão há muito tempo”, diverte-se.
O vocábulo pornografia — O escritor destaca que o termo “pornografia” entrou no vocabulário nacional por causa do Corsário. “Mas não tinha nada a ver com sexo. A palavra estava ligada à falta de ética em tratar temas polêmicos”, esclarece. Seu estilo inspirou a criação de outros jornais, que também abriram espaço para denúncias anônimas de leitores bisbilhoteiros. Foi em um destes jornais da “imprensa pornográfica” que o pesquisador encontrou uma conexão do termo pejorativo com os cigarros da Marca Veado.
Em 1888, um deles denunciava uma suposta depravação em torno da fábrica dos cigarros na Rua da Gamboa, na região portuária. Insinuava sobre a sexualidade de um homem, chamando-o de “veado” em alusão à marca de cigarros, embora de forma imprecisa, como aponta Costa. Outros textos mencionavam um “José dos Veados” ou “a marca do Corrêa”. Poderia ser José Francisco Corrêa? “Poderia. Mas como José é um nome comum, os textos poderiam se referir a algum funcionário”, pondera. Também havia relatos de supostas sem-vergonhices dele com outros homens na loja da marca na Rua da Assembleia.
Em outros trechos, conforme Costa, esse homem era citado com o código “fotografias”. O autor de Repórter Eros revela que José Francisco Corrêa usava a inovadora tecnologia da fotografia estereoscópica, capturando imagens de nus masculinos e femininos, além de paisagens da cidade para ilustrar as embalagens dos cigarros. “Não poderia ser um funcionário chamado José, mas o próprio José Francisco Corrêa,” argumenta. “Quem mais teria acesso a uma cara câmera e liberdade para circular nesses lugares senão o próprio dono?”.
Hiato — Valmir Costa conta que, após muitas polêmicas, os jornais da “imprensa pornográfica” desapareceram, assim como suas fontes de investigação para uma prova cabal. Mesmo assim, seguiu as pistas de José Francisco Corrêa, que se tornou um grande industrial e filantropo. Generoso, fez doações à Beneficência Portuguesa e outras instituições, recebendo o título de Visconde de Sande em 1898 em Portugal. Também comprou um palacete na Rua Presidente Pedreira, em Niterói, que passou a ser chamado de Palacete de Sande, hoje Museu do Ingá. “Curiosamente, o palacete ficava no número 24, mas a ligação com o jogo do bicho foi só coincidência”, observa Costa.
Depois de um escândalo — Em 1903, a revista erótica masculina O Rio Nu publicou “Bichos e Bichas”, texto que associava tipos do jogo do bicho a figuras da Rua do Ouvidor. Para o número 24, sugeria: “Se é um gajo esbaforido que passa, muito apressado — quer evitar ser mordido por algum cão — é Veado.” Costa associa o termo ao português José Francisco Corrêa, então habituado a atravessar a barca de Niterói para as noitadas na capital. “Um escândalo ou flagrante público entre Corrêa e outro homem pode ter motivado essas indiretas”, diz Costa, destacando que, o termo “gajo” (sujeito) é utilizado por portugueses.
Outro forte indício é que na mesma semana da publicação de O Rio Nu, o humorístico O Malho publicou: “Boa caça é o veado se de fresco ele é pegado”, aludindo a um possível flagrante com conotação homossexual. “Isso porque ‘fresco’ também era termo depreciativo para gays desde aquela época”. O divórcio de Corrêa naquele ano, após 21 anos de casamento, reforça essa tese. “Corrêa publicou um abaixo-assinado nos jornais, avisando sobre o divórcio, para saldar as dívidas da esposa. Em seguida, leiloou seu palacete e mudou-se para Portugal, onde foi nomeado Conde de Agrolongo.
Como Costa explica, a mídia evitou dar visibilidade ao caso pela posição financeira de Corrêa, um grande anunciante. O autor de Repórter Eros assegura que rumores sobre o envolvimento de Corrêa com homens circulavam na boca miúda e vieram à tona com o escândalo. A partir desse episódio, o termo “veado” se ressignificou-se 1903, passando de “corno” a uma ofensa a homossexuais. “Enfim, em razão de sua fábrica de cigarros, Corrêa foi apelidado de ‘veado’. De forma depreciativa, o termo passou a se referir a sua homossexualidade, estendendo-se também a outros homossexuais”, conclui.
Sobre o livro — Repórter Eros: a história do jornalismo erótico brasileiro é uma obra pioneira que explora a trajetória da imprensa erótica no Brasil desde seus primórdios, em 1808. Através de uma narrativa que inclui revistas icônicas como Ba-Ta-Clan, de 1867, O Rio Nu, O Coió, O Nabo, O Badalo, e Está Bom…Deixa, além de publicações contemporâneas como Playboy, Ele Ela, Nova, Rose, Pleiguei, Spartacus, Íntima e G Magazine, até a era digital dos anos 2020, Valmir Costa analisa a evolução dessas revistas que desafiaram tabus sobre moralidade, sexualidade e gênero, enfrentando a censura em suas diversas formas. Com uma abordagem centrada em questões como machismo, feminismo, racismo, homofobia e LGBTQI+, o livro revela como essas publicações incitaram debates socioculturais e influenciaram comportamentos. Uma leitura essencial para entender a complexa relação entre mídia, sexo, censura, estatal e religiosa, na sociedade brasileira.
SOBRE O AUTOR:
O título Repórter Eros: a história do jornalismo erótico brasileiro é o primeiro livro de Valmir Costa. Pernambucano, o autor graduou-se em Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e fez mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). A experiência profissional do autor conta com passagens pelas universidades Mackenzie, Anhembi Morumbi e Uninove, lecionando Semiótica, Teorias da Comunicação, Redação e História do Jornalismo.
SERVIÇO:
Livro: Repórter Eros: a história do jornalismo erótico brasileiro
Autor: Valmir Costa
Editora: Cepe Editora
Páginas: 696
Preço: R$ 90,00 (impresso) / R$ 32,00 (e-book)